por Amato, em
08.01.17
A morte de
Mário Soares e os ecos que dela resultaram fizeram-me voltar a este tema. Não
existe um líder corrupto sem um povo corrupto que o sustente. Não existe isso
de povo bom e líder mau. Tudo isso é uma treta. Pelo contrário, se observarmos
com atenção, vemos em cada líder de cada país, de cada nação, por maior ou
menor que seja, e até mesmo, de cada empresa, de cada pequena associatividade,
de cada ajuntamento, as características de quem representam plasmadas, bem
vincadas, em cada traço da sua personalidade.
Mário Soares,
por ora, está a ser pintado em todos os meios de comunicação com cores que
nunca teve em vida. Nos jornais, esculpem-no como o herói que ele nunca foi.
Dizem que foi o campeão da liberdade e da revolução.
É nestes
momentos que vêm à superfície esta espécie de anais não oficiais da História,
que contam os eventos passados apressadamente e de modo conveniente para a
lição de moral que se quer impingir à força sobre quem ouve. Sendo certo que
estes anais vão sendo escritos todos os dias pela mesma imprensa lacaia da
burguesia reinante, é nestas alturas que as suas conclusões axiomáticas e as
suas interpretações dogmáticas aparecem com mais clareza, com mais força.
Neste
particular, salienta-se a sombria data de vinte e cinco de novembro em que
Soares terá sido fundamental para derrotar os comunistas que queriam
implementar a ditadura. Não há nenhuma evidência disto. Pelo contrário, as
evidências apontam noutros sentidos: apontam para a extrema direita reacionária
e apontam para grupos extremistas de esquerda, não comunistas, sedentos de
mediatismo. Claro que seguir o trilho das evidências implicaria apontar o dedo
a uma grande parte dos políticos, jornalistas, comentadores e articulistas que
hoje em dia ainda preenchem o espaço mediático e político público mas que, na
altura, eram membros em plena ascensão ou da extrema esquerda anticomunista ou
da direita reacionária. Por isso, não interessa seguir por este caminho. O
Partido Comunista Português, como aliás hoje mesmo se comprova com a sua ação
parlamentar, é um partido ao serviço da República pluripartidária.
Outros
partidos comunistas, noutros países, seguiram por outros caminhos, mas quem
quer que acuse o PCP do contrário do que escrevo é simplesmente
intelectualmente desonesto ou menor.
Que se
sublinhe o facto de que, enquanto os membros do PCP assumiam uma vida árdua e
perigosa de clandestinidade na luta contra o fascismo, Mário Soares passeava-se elas boulevards parisienses. Foi isso que fez durante a maior
parte da ditadura com excepção de um entra e sai fugidio da prisão, hoje
extraordinariamente empolado pelos media, não obstante a sua irrelevância. Não
é isto de somenos: enquanto que os comunistas eram encarcerados, torturados e
mortos, Soares foi rapidamente libertado.
Soares não era um perigo para a
ditadura. Nunca foi, nem poderia ser.
Quando se dá
a revolução e, quando tudo parece seguro, Soares regressa dos seus hotéis
franceses. Naquela altura, volta dizendo-se socialista, volta e agarra-se a
Álvaro Cunhal, abraça-o chamando-o de irmão. Soares, qual Judas Iscariotes,
tendo ganho suficiente notoriedade às custas do PCP e de Álvaro Cunhal, vem a
rasgar o socialismo e a atraiçoar a revolução tão depressa quanto pôde. Foi
pelas mãos dele, e não por outras, que se reverteram as nacionalizações e
importantes reformas como a Reforma Agrária. Foi ele que chamou por todos os
burgueses exilados de volta, cada um dos que, durante décadas, governaram
Portugal ao lado de Salazar e roubaram o povo. Foi ele que assinou cada
compensação milionária.
Foi ele que conduziu o país à bancarrota e foi ele que
liderou o processo de submissão do nosso país ao directório de potências europeu
a que se convenciona hoje chamar de União Europeia.
Para efeitos
de alguma exaustividade, convém elencar. Mário Soares foi um incompetente em
todos os cargos que desempenhou. Apenas não foi um incapaz na busca e na
conquista do poder.
Como político
abstenho-me de o qualificar. Soares fica muito justamente para a História como
“aquele que colocou o socialismo na gaveta” e creio que isto basta para o
descrever no que aos princípios e ao seu carácter diz respeito.
Como
Primeiro-ministro, depauperou o país sem nunca ter tido um vislumbre de rumo
político e de desenvolvimento sustentado. As políticas que desenvolveu
suportaram-se num descontrolado endividamento externo ao mesmo tempo que
devolvia os poderes precisamente à mesma classe burguesa que suportou o
fascismo. Por duas vezes, 1977 e 1983, conduziu, enquanto Primeiro-ministro, o
nosso país à bancarrota.
Enquanto
Presidente da República, Soares não foi anedota de menor montra. Cada vez mais
rude no trato e prepotente nas suas acções, fica para a memória as suas
presidências abertas que eram autênticas férias em destinos vários, sem
absolutamente nenhuma relevância política para o país. As paradisíacas ilhas
Seychelles foram o seu destino mais comum. Enquanto que em Espanha, se criticou
o Rei por ir caçar elefantes para África, por aqui sempre se achou um piadão a
Soares nas Seychelles, às vezes a apanhar sol, às vezes a passear em cima de
uma tartaruga gigante.
Mas esta
natural apetência de Soares para depauperar o estado manteve-se até ao
final da sua vida. Para além das dezenas de reformas que acumulou dos vários
cargos que foi desempenhando, falta ainda uma honrosa menção à Fundação Soares!
Não se sabe muito bem o que se faz naquela fundação, mas sabe-se que é, do
universo de todas as fundações que existem no nosso pobre país, uma das que
mais dotações estatais tem.
Mas no nosso
país prefere-se dourar a pílula, endeusar um homem que de divino ou de santo
muito pouco teve. Volto ao princípio deste texto: o povo tem as lideranças que
merece e estas reflectem bem as características, defeitos ou virtudes, dele
próprio. Como criticar o homem pelas faltas que cada um de nós também tem? Como
colocar o corrupto na prisão quando nós próprios procuramos fugir aos impostos?
Como atirar a primeira pedra? Vale mais que se finja que o Homem foi o herói
que nunca foi. Vale mais. Vale mais a ilusão.
Pergunto-me:
será que a história contada por Homero na Odisseia é também uma invenção? Terá
sido Ulisses um verdadeiro herói?! Ver a história ser recontada diante de nós,
reescrita desta forma tão explicitamente pornográfica à minha frente, faz-me
desconfiar de todos heróis, de todos os contos, de todas as histórias jamais
escritas.
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