segunda-feira, 20 de março de 2017

“O 25 de novembro a Norte aconteceu em Setembro”


25 NOVEMBRO Livro lança um olhar sobre o verão quente no Norte do país

FOTOS ARQUIVO A CAPITAL/IP
Quando começou o 25 de novembro a Norte? Qual o impacto da rede bombista? Porque ficaram impunes os seus cérebros? Houve militantes de esquerda com cruzes pintadas nas portas? Que importância teve o cerco ao congresso do CDS? O afastamento de Corvacho e a chegada de Pires Veloso ao comando da RMN marcam o princípio do fim de quê? Num livro raro num militante comunista, Jorge Sarabando procura respostas em “O 25 de Novembro a Norte”
Do 25 de novembro de 1975 diz-se com frequência constituir o momento da normalização democrática em Portugal. Quando se fala daquela data evocam-se os acontecimentos de Lisboa e o modo como na capital se viveu o culminar de um processo. Esquece-se quase sempre a circunstância de no Norte e no Centro do país, haver uma outra história para contar, feita de violências várias, colocação de bombas, mortes, assaltos a sedes de partidos de esquerda, que continuaram muito para lá daquela data.
Num livro raro num militante comunista, em que faz questão de frisar serem seus os juízos, bem como a responsabilidade pelas apreciações feitas, Jorge Sarabando, membro do Comité Central do PCP entre 1988 e 2008, um dos responsáveis pela Direção da Organização Regional do Porto e da Comissão Nacional para as Questões da Cultura, faz uma viagem ao processo revolucionário durante o ano de 1975.

Comunista Jorge Sarabando junto ao Quartel General, no Porto
LUCÍLIA MONTEIRO
O livro pretende constituir uma visão alternativa do discurso dos vencedores do 25 de novembro? 
Sim, dos vencedores de ocasião. Por um lado é a tentativa de reconstituir aquele período mais criador da Revolução portuguesa, nos seus dois anos iniciais e que culminou com a promulgação da Constituição da República. Por outro lado é uma forma de prestar justiça a alguns militares do MFA que tiveram um papel decisivo neste processo, sendo que muitos deles foram injustiçados.
O 25 de novembro de 1975 é em geral apresentado como o momento da normalização democrática, mas o livro revela que o último ato da chamada rede bombista, cuja ação foi essencialmente a Norte, acontece apenas em 1977. Nada foi assim tão pacífico como parece?
A rede terrorista prosseguiu os seus atentados e até alguns dos mais mortíferos, com vítimas mortais, aconteceram já depois do 25 de novembro. O último ato é de abril de 1977, o que perfaz quase dois anos desde a primeira ação do ELP (Exército de Libertação de Portugal) em Bragança.
Porque é que acontece essa extensão no tempo? 
A rede terrorista não ficou satisfeita com o desfecho do 25 de novembro e como dizia um dos seus chefes, o comandante Alpoim Calvão, de facto houve uma clarificação militar, mas não uma clarificação política. Para a haver, prosseguiram os atentados. Foram 566 no total, segundo o levantamento que foi possível fazer a partir da imprensa e do livro “Dossier Terrorismo”.
Desses 566 atentados, quanto ocorreram até o 25 de novembro? 
Sensivelmente metade. Os primeiros seis meses, até o 25 de novembro, englobam cerca de metade desses atentados e a sua localização foi nos distritos do Norte e Centro do país. Curiosamente, depois do 25 de novembro, o epicentro deslocou-se para Lisboa.
Como é que, não obstante tantos atentados, com mortos, muitos feridos, muita destruição de bens materiais, quase não houve presos? 
A justiça tem os seus escaninhos. Um depoimento de um bombista confesso, Ramiro Moreira, acabou por ser judicialmente anulado. O depoimento foi publicado na altura no “Diário de Lisboa”. Todavia não teve as consequências judiciais que a gravidade dos atos cometidos poderia merecer. Basta dizer que um dos elementos mais citados, o major Mota Freitas, que tinha saído da cadeia pouco tempo antes, esteve na tribuna de honra do 1º aniversário do 25 de novembro, junto ao Quartel General, no Porto, convidado pelo seu amigo brigadeiro Pires Veloso.
O livro segue uma ordem cronológica, e um dos primeiros grandes momentos citados para dar uma ideia do ambiente que então se vivia, é o cerco ao congresso do CDS, no Palácio de Cristal. Mantém uma visão muito crítica do que lá se passou. Corresponde à posição do PCP na época? 
O que expresso são as minhas opiniões, que só a mim responsabilizam. Aquilo foi um ato provocatório, concebido com esse propósito. Isso não quer dizer que todos aqueles que participaram, e foram milhares, sobretudo jovens, fossem provocadores. Havia uma genuína rejeição do fascismo. Muitos jovens, sobretudo de esquerda, até a Juventude Socialista - mais tarde desautorizada pelo PS - assinaram uma convocatória em conjunto com a LCI, a L.U.A.R,. o Movimento da Esquerda Socialista e o Partido Revolucionário do Proletariado - Brigadas Revolucionárias (PRP-BR). Houve várias convocatórias. Por parte do PCP o esforço foi para que não houvesse lá nenhum militante comunista, e até houve alguns militantes que foram destacados para irem lá buscar algum que por lá andasse. Serviu muito bem os propósitos da direita, que era criar um clima de terra queimada, de falta de liberdades. A imagem de Portugal que foi dada junto das chancelarias europeias e norte-americana foi de intranquilidade falta de liberdades democráticas, traduzida no facto de um partido nascido depois do 25 de abril - o CDS - não ter condições, sequer para realizar um congresso.


A rede bombista foi particularmente ativa no Norte e no Centro do país
São ações como esta que caucionam o aparecimento de movimentos de direita e muito ligados à hierarquia da igreja católica, como o “Maria da Fonte”, que se reivindicavam como genuínas emanações populares? 
Tudo isto ajudava a constituir a ideia de que não havia liberdades democráticas em Portugal. É o caso da Rádio Renascença, ocupada por alguns dos seus trabalhadores, ao ponto de os do Porto cortarem com os de Lisboa e tomarem posição favorável ao Conselho de Administração. Depois há o caso República. Quando o primeiro-ministro Vasco Gonçalves foi a uma reunião da NATO, a pergunta que lhe fazem é sobre o caso do jornal República. Tudo isto vai no sentido de considerar que Portugal estava a viver uma situação anormal, em que as liberdades democráticas não estavam a ser respeitadas. Um dado curioso é que, neste processo, o PCP tem sempre as costas muito largas.
Isso explica situações gravíssimas, como o famoso assalto ao Centro de Trabalho do PCP em Famalicão, ou o cerco ao CT de Aveiro?
 Nestas tentativas de assalto começavam sempre por provocar um início de incêndio, para obrigar as pessoas a sair. Em Aveiro não resultou, mas resultou noutros sítios. A questão não era apenas o assalto aos Centros de Trabalho. A verdade é que incendiavam, assaltavam, mas passado algum tempo já estava tudo reconstruído. Houve coisas bem piores, designadamente em Famalicão, onde alguns militantes encontraram uma cruz pintada na porta das suas casas. Era um sinal de destruição ou vingança, por serem comunistas, ou simpatizante. Houve muitas pessoas que se foram embora. Foram para o sul, porque já não conseguiam aguentar a pressão, as ameaças sobre as suas vidas. No caso de Aveiro conto a história de um jovem casal que naquele dia foi ao CT e tinha o carro estacionado à porta. Pegaram fogo ao carro, num ato cobarde. Passados uns dias houve uma manifestação em Oliveira do Bairro para tirar da Câmara um dos seus membros, o Dr. Fernando Peixinho, médico prestigiado, que faleceu há pouco tempo. Nessa altura, a casa desse casal também foi saqueada. Era isto o povo? É a reflexão que coloco neste livro. Foi o povo português que se levantou contra o PCP e as forças de esquerda? Não. Veja-se o chamado Exército de Libertação de Fermentelos, que andava de terra em terra para retirar de lá os autarcas de esquerda, ou para colocar fogo aos Centros de Trabalho. Aí sim, houve falta de liberdades democráticas, mas como as vítimas eram forças de esquerda ou os sindicatos, era descrito como um levantamento popular. Daí movimentos como “Maria da Fonte”.


O ataque a sedes de partidos de esquerda era uma constante
O ataque à sede do PCP em Famalicão foi particularmente violento e um dos mais graves? 
Sim, porque houve duas vítimas mortais. Um dos defensores do CT e uma pessoa que podemos pensar que estava do lado dos atacantes, embora o disparo, tanto quanto foi possível reconstituir, tenha sido de um militar do regimento de Braga. Muitas vezes as forças não estavam preparadas para operações de ordem pública. Em Aveiro uma das vítimas foi um soldado que estava na equipa do Regimento de Infantaria que procurava proteger o CT do PCP. Faleceu vítima de uma bala perdida e durante muitos anos a Comissão Concelhia do PCP de Aveiro organizou uma romagem à campa desse soldado.
Percebe-se ao longo do livro uma simpatia pelo brigadeiro Eurico Corvacho, comandante da Região Militar Norte... 
O brigadeiro Corvacho foi comandante no período em que foram presos elementos ligados ao ELP, e em que toda a operação do ELP foi denunciada. Revelou uma extraordinária coragem, tanto dele, como os militares que estavam na 2ª Repartição, que fizeram o combate ao que já era o gérmen da rede terrorista. Tudo foi movido para que fosse destituído, o que veio a acontecer já no princípio de setembro de 1975 no seguimento do pronunciamento de Tancos. Havia uma grande simpatia dos trabalhadores e do povo do Porto para com o brigadeiro Corvacho. Não foi por acaso que um jornalista do Jornal de Notícias, depois seu diretor, José Saraiva, militante do PS, veio lamentar num artigo no jornal que o PS se tivesse juntado à conspiração que levou à queda de Corvacho. O 25 de novembro, no Porto, ocorreu no verão, no início de setembro.
Porquê? 
Houve um conjunto de acusações que levaram a que o brigadeiro Corvacho solicitasse ao Conselho da Revolução, do qual era membro, que fizesse um inquérito à sua atividade. O inquérito, feito pelo brigadeiro Agostinho Ferreira, durou duas semanas e ilibou o brigadeiro Corvacho. No final de agosto retomou as suas funções de comando. É então que ocorre a insubordinação de comandantes de unidades da Região Militar Norte, que vão colocar-se às ordens do comandante da Região Militar Centro, o brigadeiro Franco Charais. É uma situação anormal. Isso só ocorreu porque houve um trabalho de uma parte do Grupo dos Nove sem o qual essa oficialidade mais conservadora não teria podido ir tão longe. Insubordinaram-se e não foram punidos por isso. Quando cá chegou o novo comandante, escolhido numa lista de quatro nomes possíveis indicada pelos insubordinados, uma das primeiras medidas foi correr com a equipa da 2ª Repartição, que tinha sido responsável pelo combate à rede terrorista.
É então que entra em cena Pires Veloso?
Assim é. Pires Veloso foi mais longe do que alguns dos seus apoiantes ocasionais esperavam. Desde logo o conjunto de medidas que de imediato tomou, como a extinção do quartel CICAP numa operação relâmpago. O facto de transferir 400 espingardas G3 para a PSP. Além de ter criado uma Comissão de Economia, em que uma das suas primeiras medidas foi pedir o descongelamento das contas bancárias, que tinham sido congeladas por razões que o Banco de Portugal saberia. Foram medidas cirúrgicas. Vinham em carteira. Tentou levar o mais longe possível os saneamentos à esquerda. O 25 de novembro, naquilo que significa de alteração de correlação de forças, a Norte já tinha acontecido em setembro.
Tudo isso após um mês de agosto particularmente violento? 
Pois foi. A conspiração contra o brigadeiro Corvacho desenrola-se no mês de agosto, com muitos atentados bombistas. O distrito do Porto esteve sempre no 'top' dos atentados, mas acontecem os assaltos aos centros de trabalhos, às sedes sindicais, que na verdade têm um pico em julho e agosto. Depois, a ação da rede terrorista começa a centrar-se mais nos atentados bombistas. Alguns deles são movidos por um certo ódio à cultura. Houve o atentado contra a cooperativa Árvore, contra a livraria “Avante!”. Lembro o ataque, com recurso à metralhadora, à livraria “Víctor”, em Braga, os ataques a algumas coletividades. Gente ligada ao mundo da cultura teve os seus carros destruídos. Outros foram perseguidos.

Manifestação frente à Reitoria da Universidade do Porto
E no dia 25 de novembro, também houve violência a Norte? 
Na própria noite do 25 de novembro três carros de três destacados democratas do Porto foram pelos ares.
O que se podia esperar?
Hoje sabemos, através das palavras de Alpoim Calvão, de Paradela de Abreu e de outros 'heróis' da direita, que estavam preparados grupos capazes de executar quem quer que fosse. Até onde estavam dispostos a ir, eles próprios o dizem. O próprio presidente da República, general Costa Gomes, diz num discurso que 'Portugal não será o Chile da Europa'. Viviam-se momentos de grande gravidade. Naquele contexto e com as suas especificidades, surgem movimentos como os SUV (Soldados Unidos Vencerão), uma organização nascida no Porto, e que dura apenas três meses, mas que organizou grandes manifestações. A esquerda, na sua grande parte, esteve com os SUV, mesmo no dia 27 de novembro, quando os acontecimentos já se tinham desencadeado. Hoje é fácil dizer que Portugal não foi o Chile da Europa, mas a história tem este lado perverso. Na altura não se sabia o que ia acontecer. O sentimento de defesa de uma Revolução que estava a ser atacada foi o que levou dezenas de milhares de pessoas à rua.

Entrevista publicada na edição do Expresso Diário de 28/12/2015

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