25 NOVEMBRO Livro lança um olhar sobre o verão quente
no Norte do país
FOTOS ARQUIVO A
CAPITAL/IP
Quando começou o 25 de novembro a Norte?
Qual o impacto da rede bombista? Porque ficaram impunes os seus cérebros? Houve
militantes de esquerda com cruzes pintadas nas portas? Que importância teve o
cerco ao congresso do CDS? O afastamento de Corvacho e a chegada de Pires
Veloso ao comando da RMN marcam o princípio do fim de quê? Num livro raro num
militante comunista, Jorge Sarabando procura respostas em “O 25 de Novembro a
Norte”
Do 25 de novembro de 1975 diz-se com
frequência constituir o momento da normalização democrática em Portugal. Quando
se fala daquela data evocam-se os acontecimentos de Lisboa e o modo como na
capital se viveu o culminar de um processo. Esquece-se quase sempre a
circunstância de no Norte e no Centro do país, haver uma outra história para
contar, feita de violências várias, colocação de bombas, mortes, assaltos a
sedes de partidos de esquerda, que continuaram muito para lá daquela data.
Num livro raro num militante comunista, em
que faz questão de frisar serem seus os juízos, bem como a responsabilidade
pelas apreciações feitas, Jorge Sarabando, membro do Comité Central do PCP
entre 1988 e 2008, um dos responsáveis pela Direção da Organização Regional do
Porto e da Comissão Nacional para as Questões da Cultura, faz uma viagem ao
processo revolucionário durante o ano de 1975.
Comunista Jorge Sarabando junto ao Quartel General, no
Porto
LUCÍLIA MONTEIRO
O livro pretende constituir uma visão alternativa do discurso dos
vencedores do 25 de novembro?
Sim, dos
vencedores de ocasião. Por um lado é a tentativa de reconstituir aquele período
mais criador da Revolução portuguesa, nos seus dois anos iniciais e que
culminou com a promulgação da Constituição da República. Por outro lado é uma
forma de prestar justiça a alguns militares do MFA que tiveram um papel
decisivo neste processo, sendo que muitos deles foram injustiçados.
O 25 de novembro de 1975 é em geral apresentado como o momento da
normalização democrática, mas o livro revela que o último ato da chamada rede
bombista, cuja ação foi essencialmente a Norte, acontece apenas em 1977. Nada
foi assim tão pacífico como parece?
A rede
terrorista prosseguiu os seus atentados e até alguns dos mais mortíferos, com
vítimas mortais, aconteceram já depois do 25 de novembro. O último ato é de
abril de 1977, o que perfaz quase dois anos desde a primeira ação do ELP
(Exército de Libertação de Portugal) em Bragança.
Porque é que acontece essa extensão no tempo?
A rede
terrorista não ficou satisfeita com o desfecho do 25 de novembro e como dizia
um dos seus chefes, o comandante Alpoim Calvão, de facto houve uma clarificação
militar, mas não uma clarificação política. Para a haver, prosseguiram os
atentados. Foram 566 no total, segundo o levantamento que foi possível fazer a
partir da imprensa e do livro “Dossier Terrorismo”.
Desses 566 atentados, quanto ocorreram até o 25 de novembro?
Sensivelmente
metade. Os primeiros seis meses, até o 25 de novembro, englobam cerca de metade
desses atentados e a sua localização foi nos distritos do Norte e Centro do
país. Curiosamente, depois do 25 de novembro, o epicentro deslocou-se para
Lisboa.
Como é que, não obstante tantos atentados, com mortos, muitos feridos,
muita destruição de bens materiais, quase não houve presos?
A justiça tem
os seus escaninhos. Um depoimento de um bombista confesso, Ramiro Moreira,
acabou por ser judicialmente anulado. O depoimento foi publicado na altura no
“Diário de Lisboa”. Todavia não teve as consequências judiciais que a gravidade
dos atos cometidos poderia merecer. Basta dizer que um dos elementos mais
citados, o major Mota Freitas, que tinha saído da cadeia pouco tempo antes,
esteve na tribuna de honra do 1º aniversário do 25 de novembro, junto ao
Quartel General, no Porto, convidado pelo seu amigo brigadeiro Pires Veloso.
O livro segue uma ordem cronológica, e um dos primeiros grandes momentos
citados para dar uma ideia do ambiente que então se vivia, é o cerco ao
congresso do CDS, no Palácio de Cristal. Mantém uma visão muito crítica do que
lá se passou. Corresponde à posição do PCP na época?
O que expresso
são as minhas opiniões, que só a mim responsabilizam. Aquilo foi um ato
provocatório, concebido com esse propósito. Isso não quer dizer que todos
aqueles que participaram, e foram milhares, sobretudo jovens, fossem
provocadores. Havia uma genuína rejeição do fascismo. Muitos jovens, sobretudo
de esquerda, até a Juventude Socialista - mais tarde desautorizada pelo PS -
assinaram uma convocatória em conjunto com a LCI, a L.U.A.R,. o Movimento da
Esquerda Socialista e o Partido Revolucionário do Proletariado - Brigadas
Revolucionárias (PRP-BR). Houve várias convocatórias. Por parte do PCP o
esforço foi para que não houvesse lá nenhum militante comunista, e até houve
alguns militantes que foram destacados para irem lá buscar algum que por lá
andasse. Serviu muito bem os propósitos da direita, que era criar um clima de
terra queimada, de falta de liberdades. A imagem de Portugal que foi dada junto
das chancelarias europeias e norte-americana foi de intranquilidade falta de
liberdades democráticas, traduzida no facto de um partido nascido depois do 25
de abril - o CDS - não ter condições, sequer para realizar um congresso.
A rede bombista foi particularmente ativa no Norte e
no Centro do país
São ações como esta que caucionam o aparecimento de movimentos de direita e
muito ligados à hierarquia da igreja católica, como o “Maria da Fonte”, que se
reivindicavam como genuínas emanações populares?
Tudo isto
ajudava a constituir a ideia de que não havia liberdades democráticas em
Portugal. É o caso da Rádio Renascença, ocupada por alguns dos seus
trabalhadores, ao ponto de os do Porto cortarem com os de Lisboa e tomarem
posição favorável ao Conselho de Administração. Depois há o caso República.
Quando o primeiro-ministro Vasco Gonçalves foi a uma reunião da NATO, a
pergunta que lhe fazem é sobre o caso do jornal República. Tudo isto vai no
sentido de considerar que Portugal estava a viver uma situação anormal, em que
as liberdades democráticas não estavam a ser respeitadas. Um dado curioso é
que, neste processo, o PCP tem sempre as costas muito largas.
Isso explica situações gravíssimas, como o famoso assalto ao Centro de
Trabalho do PCP em Famalicão, ou o cerco ao CT de Aveiro?
Nestas tentativas de assalto começavam sempre
por provocar um início de incêndio, para obrigar as pessoas a sair. Em Aveiro
não resultou, mas resultou noutros sítios. A questão não era apenas o assalto
aos Centros de Trabalho. A verdade é que incendiavam, assaltavam, mas passado
algum tempo já estava tudo reconstruído. Houve coisas bem piores,
designadamente em Famalicão, onde alguns militantes encontraram uma cruz
pintada na porta das suas casas. Era um sinal de destruição ou vingança, por
serem comunistas, ou simpatizante. Houve muitas pessoas que se foram embora.
Foram para o sul, porque já não conseguiam aguentar a pressão, as ameaças sobre
as suas vidas. No caso de Aveiro conto a história de um jovem casal que naquele
dia foi ao CT e tinha o carro estacionado à porta. Pegaram fogo ao carro, num
ato cobarde. Passados uns dias houve uma manifestação em Oliveira do Bairro
para tirar da Câmara um dos seus membros, o Dr. Fernando Peixinho, médico
prestigiado, que faleceu há pouco tempo. Nessa altura, a casa desse casal
também foi saqueada. Era isto o povo? É a reflexão que coloco neste livro. Foi
o povo português que se levantou contra o PCP e as forças de esquerda? Não.
Veja-se o chamado Exército de Libertação de Fermentelos, que andava de terra em
terra para retirar de lá os autarcas de esquerda, ou para colocar fogo aos
Centros de Trabalho. Aí sim, houve falta de liberdades democráticas, mas como
as vítimas eram forças de esquerda ou os sindicatos, era descrito como um
levantamento popular. Daí movimentos como “Maria da Fonte”.
O ataque a sedes de partidos de esquerda era uma
constante
O ataque à sede do PCP em Famalicão foi particularmente violento e um dos
mais graves?
Sim, porque
houve duas vítimas mortais. Um dos defensores do CT e uma pessoa que podemos
pensar que estava do lado dos atacantes, embora o disparo, tanto quanto foi
possível reconstituir, tenha sido de um militar do regimento de Braga. Muitas
vezes as forças não estavam preparadas para operações de ordem pública. Em
Aveiro uma das vítimas foi um soldado que estava na equipa do Regimento de
Infantaria que procurava proteger o CT do PCP. Faleceu vítima de uma bala
perdida e durante muitos anos a Comissão Concelhia do PCP de Aveiro organizou
uma romagem à campa desse soldado.
Percebe-se ao longo do livro uma simpatia pelo brigadeiro Eurico Corvacho,
comandante da Região Militar Norte...
O brigadeiro
Corvacho foi comandante no período em que foram presos elementos ligados ao
ELP, e em que toda a operação do ELP foi denunciada. Revelou uma extraordinária
coragem, tanto dele, como os militares que estavam na 2ª Repartição, que fizeram
o combate ao que já era o gérmen da rede terrorista. Tudo foi movido para que
fosse destituído, o que veio a acontecer já no princípio de setembro de 1975 no
seguimento do pronunciamento de Tancos. Havia uma grande simpatia dos
trabalhadores e do povo do Porto para com o brigadeiro Corvacho. Não foi por
acaso que um jornalista do Jornal de Notícias, depois seu diretor, José
Saraiva, militante do PS, veio lamentar num artigo no jornal que o PS se
tivesse juntado à conspiração que levou à queda de Corvacho. O 25 de novembro,
no Porto, ocorreu no verão, no início de setembro.
Porquê?
Houve um conjunto de acusações que levaram a que o brigadeiro Corvacho solicitasse ao Conselho da Revolução, do qual era membro, que fizesse um inquérito à sua atividade. O inquérito, feito pelo brigadeiro Agostinho Ferreira, durou duas semanas e ilibou o brigadeiro Corvacho. No final de agosto retomou as suas funções de comando. É então que ocorre a insubordinação de comandantes de unidades da Região Militar Norte, que vão colocar-se às ordens do comandante da Região Militar Centro, o brigadeiro Franco Charais. É uma situação anormal. Isso só ocorreu porque houve um trabalho de uma parte do Grupo dos Nove sem o qual essa oficialidade mais conservadora não teria podido ir tão longe. Insubordinaram-se e não foram punidos por isso. Quando cá chegou o novo comandante, escolhido numa lista de quatro nomes possíveis indicada pelos insubordinados, uma das primeiras medidas foi correr com a equipa da 2ª Repartição, que tinha sido responsável pelo combate à rede terrorista.
Houve um conjunto de acusações que levaram a que o brigadeiro Corvacho solicitasse ao Conselho da Revolução, do qual era membro, que fizesse um inquérito à sua atividade. O inquérito, feito pelo brigadeiro Agostinho Ferreira, durou duas semanas e ilibou o brigadeiro Corvacho. No final de agosto retomou as suas funções de comando. É então que ocorre a insubordinação de comandantes de unidades da Região Militar Norte, que vão colocar-se às ordens do comandante da Região Militar Centro, o brigadeiro Franco Charais. É uma situação anormal. Isso só ocorreu porque houve um trabalho de uma parte do Grupo dos Nove sem o qual essa oficialidade mais conservadora não teria podido ir tão longe. Insubordinaram-se e não foram punidos por isso. Quando cá chegou o novo comandante, escolhido numa lista de quatro nomes possíveis indicada pelos insubordinados, uma das primeiras medidas foi correr com a equipa da 2ª Repartição, que tinha sido responsável pelo combate à rede terrorista.
É então que entra em cena Pires Veloso?
Assim é. Pires
Veloso foi mais longe do que alguns dos seus apoiantes ocasionais esperavam.
Desde logo o conjunto de medidas que de imediato tomou, como a extinção do
quartel CICAP numa operação relâmpago. O facto de transferir 400 espingardas G3
para a PSP. Além de ter criado uma Comissão de Economia, em que uma das suas
primeiras medidas foi pedir o descongelamento das contas bancárias, que tinham
sido congeladas por razões que o Banco de Portugal saberia. Foram medidas
cirúrgicas. Vinham em carteira. Tentou levar o mais longe possível os
saneamentos à esquerda. O 25 de novembro, naquilo que significa de alteração de
correlação de forças, a Norte já tinha acontecido em setembro.
Tudo isso após um mês de agosto particularmente violento?
Pois foi. A conspiração contra o brigadeiro Corvacho desenrola-se no mês de agosto, com muitos atentados bombistas. O distrito do Porto esteve sempre no 'top' dos atentados, mas acontecem os assaltos aos centros de trabalhos, às sedes sindicais, que na verdade têm um pico em julho e agosto. Depois, a ação da rede terrorista começa a centrar-se mais nos atentados bombistas. Alguns deles são movidos por um certo ódio à cultura. Houve o atentado contra a cooperativa Árvore, contra a livraria “Avante!”. Lembro o ataque, com recurso à metralhadora, à livraria “Víctor”, em Braga, os ataques a algumas coletividades. Gente ligada ao mundo da cultura teve os seus carros destruídos. Outros foram perseguidos.
Pois foi. A conspiração contra o brigadeiro Corvacho desenrola-se no mês de agosto, com muitos atentados bombistas. O distrito do Porto esteve sempre no 'top' dos atentados, mas acontecem os assaltos aos centros de trabalhos, às sedes sindicais, que na verdade têm um pico em julho e agosto. Depois, a ação da rede terrorista começa a centrar-se mais nos atentados bombistas. Alguns deles são movidos por um certo ódio à cultura. Houve o atentado contra a cooperativa Árvore, contra a livraria “Avante!”. Lembro o ataque, com recurso à metralhadora, à livraria “Víctor”, em Braga, os ataques a algumas coletividades. Gente ligada ao mundo da cultura teve os seus carros destruídos. Outros foram perseguidos.
Manifestação frente à Reitoria da Universidade do
Porto
E no dia 25 de novembro, também houve violência a Norte?
Na própria noite do 25 de novembro três carros de três destacados democratas do Porto foram pelos ares.
Na própria noite do 25 de novembro três carros de três destacados democratas do Porto foram pelos ares.
O que se podia esperar?
Hoje sabemos,
através das palavras de Alpoim Calvão, de Paradela de Abreu e de outros
'heróis' da direita, que estavam preparados grupos capazes de executar quem
quer que fosse. Até onde estavam dispostos a ir, eles próprios o dizem. O
próprio presidente da República, general Costa Gomes, diz num discurso que
'Portugal não será o Chile da Europa'. Viviam-se momentos de grande gravidade.
Naquele contexto e com as suas especificidades, surgem movimentos como os SUV
(Soldados Unidos Vencerão), uma organização nascida no Porto, e que dura apenas
três meses, mas que organizou grandes manifestações. A esquerda, na sua grande
parte, esteve com os SUV, mesmo no dia 27 de novembro, quando os acontecimentos
já se tinham desencadeado. Hoje é fácil dizer que Portugal não foi o Chile da
Europa, mas a história tem este lado perverso. Na altura não se sabia o que ia
acontecer. O sentimento de defesa de uma Revolução que estava a ser atacada foi
o que levou dezenas de milhares de pessoas à rua.
Entrevista
publicada na edição do Expresso Diário de 28/12/2015
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