Lisboa, 05 abr (Lusa) — Virgílio Varela, o capitão que liderou a coluna militar do malogrado “golpe das Caldas”, dois meses antes do 25 de Abril de 1974, morreu na terça-feira aos 79 anos, disse hoje à agência Lusa uma fonte familiar.
Ele foi o primeiro a puxar da pistola
Folhear o álbum de fotografias da infância de Virgílio Luz Varela é um exercício monótono - em quase todas as imagens está a fazer a continência. Desde sempre quis ser militar, embora nada o fadasse para tal destino. Madeirense, filho de um jurista da Ponta do Sol e de uma professora de Letras, Virgílio tinha aquela ideia fixa vá-se lá saber porquê. E mal acabou o liceu, decidiu inscrever-se na Academia Militar.
Enviou os papéis da matrícula mas embateu nos famosos 'custos da insularidade': o mau tempo atrasou o barco para o Continente e os documentos não entraram a tempo na Academia.
Tramado pela meteorologia, insistiu na vocação. Ofereceu-se para a tropa e entrou no curso de oficiais milicianos. Logo de seguida, rebentou a guerra em Angola e foi mobilizado.
Fez guerra heróica, mas sempre dirá que não, insistindo que quem ganhou as duas cruzes de guerra foram os seus homens. Otelo Saraiva de Carvalho escreveria que as condecorações granjearam o prestígio de que Virgílio Varela gozava no quartel das Caldas da Rainha, mas este nega: “A antiguidade, a antiguidade é que me dava o prestígio!”.
Se entre militares se diz que 'a antiguidade é um posto', para este homem ela estará no cerne de todas as suas disputas. Até às últimas consequências.
Vem da guerra em tenente, teima em entrar para a Academia Militar e consegue. Acaba o curso e continua tenente porque não lhe contam o tempo de comando de tropas em campanha. E fica revoltado. Embora o Parlamento lhe dê razão - a si e aos outros milicianos - e legisle nesse sentido, o ministro do Exército diz que a lei só abrangerá casos futuros. Varela indigna-se e escreve - a meias com o companheiro de guerra Silva Carvalho, com quem haverá de protagonizar aquele que ficaria conhecido como 'golpe das Caldas' - o documento intitulado 'De como o ministro do Exército atraiçoa, vicia e deturpa a Lei do Serviço Militar votada na Assembleia Nacional'.
Espera cinco anos no Regimento de Infantaria 5 (RI5), das Caldas da Rainha, que os colegas da Academia cheguem a capitães para, então, poder também ele ser promovido. Todo o quartel já o ouvira dizer vezes sem conta: “Eu sou o tenente mais antigo de Portugal, talvez da Península, quiçá do mundo!”.
Intitula-se o “terceiro comandante honorário” do quartel. Conhece os cantos à casa, é responsável pelas comunicações, pelo centro cripto e pelo alojamento dos 70 oficiais. E comanda uma das oito companhias deste regimento onde o Exército ministra o Curso de Sargentos.
A luta de 'puros' e 'espúrios'
O Movimento das Forças Armadas (MFA), que viria a derrubar o antigo regime a 25 de Abril de 1974, teve como origem primordial uma luta corporativa: os oficiais do quadro permanente (os chamados 'puros') viam-se ultrapassados na hierarquia por milicianos que iam sendo promovidos à medida que cumpriam comissões na Guerra Colonial; e havia também os oriundos de milicianos ('espúrios') que iam para a Academia e a quem não era contado o tempo de guerra. Luz Varela era um espúrio - os 70 oficiais que alojava nas Caldas eram metade puros, metade espúrios.
No primeiro dia do ano de 1974, o general António de Spínola, vice-chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (o chefe era Costa Gomes), recebeu uma petição assinada por todos os espúrios. À cabeça da lista estava o nome de Virgílio Luz Varela. Por isso mesmo, quando a 15 de Março Spínola e Costa Gomes foram demitidos, como represália por se terem recusado a participar na véspera na famosa 'brigada do reumático' de apoio a Marcello Caetano, Varela pôs o pessoal das Caldas de sobreaviso e garantiu à Coordenadora do MFA - que havia muito preparava o golpe de Estado - que, se fosse preciso, marcharia sozinho sobre Lisboa.
Nessa mesma noite, o major spinolista Manuel Monge recebe na sua casa de Lisboa um telefonema do quartel de Lamego. O capitão Ferreira da Silva comunica-lhe que a unidade se sublevou e se encontra “sobre rodas” e pronta para avançar em direcção à capital. Monge está acompanhado pelos majores Otelo e Casanova Ferreira e, ainda, pelo capitão Armando Marques Ramos, que pertenceu à unidade das Caldas e conhece-a bem.
Otelo tenta sublevar Mafra, mas a tropa está em exercícios de campo. Vendas Novas partiu para fim-de-semana (tudo se passa de sexta para sábado), Monge não tem êxito junto de Cavalaria 7 e, em Santarém, Salgueiro Maia não adere e explica porquê: “Sempre disse que precisava de um aviso de 48 horas de antecedência. As munições estão em Santa Margarida”. Para cúmulo, Lamego acaba por não sair.
Nas Caldas, pelo contrário, o caldeirão estoirou. E é para lá que parte Armando Marques Ramos.
Pistola à cowboy
As condições para o levantamento militar nas Caldas tinham condimentos muito propícios. O comandante era novo, chegara na véspera, enviado pelo Regime para controlar aquele barril de pólvora. E fizera logo uma revista a oito companhias em parada, durante a qual humilhou o major, já antigo no quartel, ao descompô-lo pela forma como usava a pistola descaída, à cowboy.
Na qualidade de 'terceiro comandante honorário', é Luz Varela quem toma a iniciativa de levantar a primeira arma contra a ditadura, ou seja, prender o comandante de pistola em punho. Com o seu velho amigo e companheiro de luta Silva Carvalho à ilharga e dois alferes atrás, sobe, decidido, a escada em caracol de cimento que calcorreou tantas vezes, ao longo dos anos de espera. No patamar, fila o corredor com cuidado, porque - ele o diz - “podia ser enfiado por uma bala do comandante”. À porta do gabinete saca da pistola Walter 9 milímetros, introduz uma bala na câmara e liga a segurança. “Sem apontar a arma é que eu não ia. Lembrei-me do Varela Gomes, no golpe de Beja, que não puxou da arma e foi o que se viu”, conta Luz Varela à Tabu.
“A porta abria-se para dentro, pus-me do lado de cá, o Silva Carvalho do lado de lá. Entrámos. Mas, afinal era o segundo comandante quem estava ali - de arma na mão, embora apontada para baixo. Ele devia ter ouvido alguma coisa...”.
O 2.º comandante, tenente-coronel Farinha Tavares, fecha logo a porta e exclama: “Ó Varela, guarda a arma e vamos conversar!”. Aquele que fora o mais antigo dos tenentes guarda a pistola, mas dita as regras do jogo: “Ou adere e chefia; ou considera-se detido; ou se quiser vai para casa”. O outro escolhe: “Fico detido”.
Surge então em cena o comandante, em roupão. É parco em palavras. Também escolhe ficar fechado no gabinete - sob palavra de honra de que não usará o telefone, que não dará o alarme. A História dirá que ele pegou no telefone, embora ainda hoje Luz Varela considere que lhe custa a acreditar que o comandante tenha faltado à palavra.
A lenta rendição
O spinolista capitão Armando Marques Ramos, coadjuvado por Silva Carvalho, franqueia a porta de armas do quartel das Caldas à frente de uma coluna de carros com destino a Lisboa. A partida é tão precipitada que até a cozinha de campanha vai com os revoltosos.
Mas a três quilómetros da capital chegam ao encontro da coluna os majores Manuel Monge e Casanova Ferreira, em sentido inverso, avisando que às portas da cidade está um enorme aparato de tropas à espera. E voltam todos para trás.
Monge e Casanova ultrapassam de automóvel a coluna de regresso às Caldas, assistem à entrada da cabisbaixa guarnição no quartel e participam na negociação da rendição com o comandante das tropas que, entretanto, foram cercando o RI5. É uma longa rendição, com o sitiante brigadeiro Pedro Serrano a permitir sucessivos adiamentos de prazos, que começam por ser de meia-hora e terminam em quartos-de-hora. Já o dia vai alto quando Luz Varela é detido. Não dorme há 48 horas, mas tem muito tempo para pôr o sono em ordem na prisão da Trafaria... até ao 25 de Abril.
O actual coronel reformado Virgílio Luz Varela, de 75 anos, denota um gosto especial em contar como soube quando iria ser libertado: “No dia 9 de Abril, na prisão, veio um soldado oferecer-se para me cortar o cabelo. Achei estranho, não era habitual. Sentei-me na cadeira e o barbeiro sussurrou-me ao ouvido: 'O compadre do meu capitão diz que vai jantar consigo no dia dos seus anos'. O meu compadre era o capitão Alberto Ferreira e sabia bem o dia dos meus anos: 27 de Abril”.
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