segunda-feira, 10 de julho de 2017

Quando Sócrates ligou a José Rodrigues dos Santos

Na noite anterior, o ex-primeiro-ministro participara no seu programa semanal de comentário na RTP. Tinha ocorrido um pequeno desastre: José Rodrigues do Santos, que fora entretanto escolhido para alternar com a jornalista Cristina Esteves na condução da conversa, rompeu com o registo da sua colega: em vez de se limitar a lançar temas e escutar acriticamente o que Sócrates debitava, acompanhou os temas de perguntas e inquietações.
Sócrates criticou amargamente a “austeridade cega” do governo Passos/Portas. Rodrigues dos Santos deixou-o falar. Quando Sócrates terminou, agarrou nas suas anotações e provou, com documentos e registos de intervenções públicas, que também José Sócrates fora, enquanto chefe do Governo, um defensor das políticas de austeridade. Surpreendido, José Sócrates foi ao tapete num estúdio de televisão pela primeira vez na vida.
No dia seguinte, o socialista ligou a Rodrigues dos Santos. O diálogo foi violento. Acusou o jornalista de lhe ter montado uma cilada, uma “canalhice”. O pivô tentou pôr água na fervura:  “Olhe, vou-lhe dizer o que as pessoas que o senhor conhece disseram sobre a entrevista: ‘o Zé Rodrigues dos Santos é um cabrão, fez isto e fez aquilo, e tu aguentaste-te muito bem, tiveste calma e deste grandes respostas. Tu é que ficaste a ganhar.’ Disseram-lhe ou não lhe disseram isso?”
Sócrates não negou, mas já estava mais à frente. Queria saber se aquele registo era para manter em futuros programas. O pivô disse-lhe o óbvio: não estava disponível para fazer concessões. A dada altura, Sócrates recordou-lhe que com Cristina Esteves não era assim. Rodrigues dos Santos não se comoveu: “O senhor acha-me com cara de ter tempo a perder para ouvir políticos a aldrabarem as pessoas e a venderem a banha da cobra? Tenho coisas mais úteis para fazer com o meu tempo.”
A tese do pivô da RTP era que Sócrates não era um comentador; era um político – e os políticos devem ser confrontados com o seu passado e as suas contradições. Entretanto, muito mudou: Sócrates foi preso e libertado, o governo é outro, os protagonistas também. Há, porém, pelo menos duas circunstâncias que permanecem inertes. 
1) os políticos ainda não se livraram da tentação quase libidinosa de pressionar jornalistas – sobretudo os da RTP; 
2) José Rodrigues dos Santos permanece implacável na defesa da sua independência, doa a quem doer.

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