terça-feira, 25 de julho de 2017

Os "negócios do fogo"

O presidente da empresa que gere a maior frota aérea a combater incêndios no País revela, em entrevista à VISÃO, o que sabe sobre os negócios do fogo. Ricardo Dias diz que Portugal sempre funcionou 

“num esquema de consórcio cartelizado” e que o Estado andou a pagar 20% a 30% mais porque as empresas se juntavam e “faziam o que queriam”
Ricardo Dias é presidente da Everjets, a empresa que gere 
25 helicópteros ligeiros para combate a incêndios e pôs o Estado em tribunal por ter assinado um contrato para operar seis Kamov e só ter três em condições de voar. À VISÃO, diz já ter sido aliciado a juntar-se a um consórcio de empresas portuguesas. E aponta o dedo: durante anos empresas do setor terão usado esse método para garantir que levavam o Estado a pagar muito mais do que as operações efetivamente custavam.

(...)

Que empresas?
Não posso revelar.
E se o Ministério Público, que recebeu informações da justiça espanhola, vos quiser ouvir?
Estamos disponíveis para contar o que sabemos. Posso dizer que aqui não estamos a falar de empresas espanholas. Essas interpostas pessoas que nos abordaram falavam com empresas portuguesas.
(...)
Qual era o lucro?
20% ou 30 por cento. Sei que o Estado pagava mais 20% a 30 por cento pelos helicópteros ligeiros do que paga hoje à Everjets. Sei que a Everjets em 2012 acabou com um feudo de três a quatro empresas que se reuniam, faziam o preço e depois repartiam os lucros. Não havia concorrência, faziam o que queriam. Muitas vezes deixavam os concursos vazios.
Como assim?
Ninguém concorria, abria-se um novo concurso, o preço subia. Hoje temos um contrato que, dividido, dá cerca de 300 mil euros por cada helicóptero. Outras empresas chegaram a vendê-los por quase 500 mil. Deixavam os concursos vazios, ou faziam ajustes diretos. Não percebo, porque mesmo fazendo a este preço ganha-se dinheiro. Não posso dizer que não, é o nosso negócio. Mas é um preço justo.
Uma das empresas investigadas em Espanha ganhou mais de 
30 milhões de euros em Portugal através de ajustes diretos. 
Parece-lhe excessivo?

(...)
A VISÃO fez as contas em 2016 e concluiu que até 2015 cada hora de voo de um Kamov custou cerca de 35 mil euros.
Agora são 5 333 euros por hora de voo. Os contribuintes pagam hoje o mesmo praticamente por tudo – operação e manutenção 
– que pagaram só pela manutenção até 2015. Ainda por cima uma manutenção que era tão boa que deixou quatro helicópteros parados. Não é preciso ir a Coimbra tirar um curso para saber o que isto é.
Tente ser imparcial. Honestamente, o Estado não poupava se fosse a Força Aérea a combater os incêndios?
Se tivesse de operar toda a estrutura da fase Charlie, a Força Aérea teria de ter uma estrutura dez vezes superior à que tem hoje. O privado sabe ter uma estrutura leve e um preço competitivo, sabe negociar o preço do helicóptero. O Estado não sabe fazer nada disso. Mas lanço então o desafio. Porque não vem já este ano ajudar com os EH-101? Se a ANPC [Autoridade Nacional de Proteção Civil] deixar, emprestamos os baldes suplentes dos Kamov. Nos EUA, a Força Aérea usa quase toda a frota para apoiar os privados nos incêndios. Será que a Força Aérea quer mesmo apagar incêndios? Os bombeiros querem a Força Aérea? Um piloto da Força Aérea recebe ordens de bombeiros?

No dia em que se pensou que um Canadair tinha caído, vimos um helicóptero do INEM voltar para trás porque não tinha combustível. É normal ter descolado assim?
Um helicóptero de emergência médica não devia ficar sem combustível. Ou não era o indicado para o serviço ou não está a cumprir o caderno de encargos do concurso, porque o caderno obriga a que encham o depósito sempre que aterram. É uma pergunta a ser feita a outra entidade, mas que não é normal não é.
(...)
Um piloto que anda a voar num cenário como o de Pedrógão Grande poderia ter noção do que se estava a passar na EN 236?
Só se alguém lhe desse a localização e dissesse que havia ali gente a morrer podia ter feito alguma coisa.
 (...)
A VISÃO já revelou imagens que mostravam o estado em que se encontravam estes Kamov. Alguns andavam a voar sem condições de segurança. Alguém devia ser responsabilizado criminalmente?Só fico espantado como é que ainda não foi. Estamos a falar de helicópteros que não servem só para apagar fogos, durante o inverno transportam doentes.
(...)
Afinal, quando a Everjets recebeu os Kamov em 2015, algum estava em condições de voar?
O que estava mais próximo de poder voar ainda precisou de um arranjo de 200 mil euros. Que o Estado pagou. Deviam estar todos tipo Rolls-Royce para o preço que se pagava.
Porque o Estado não pôs logo os outros dois a voar, pagando esses arranjos?
O que nos disseram é que era muito dinheiro, que ia ser após. O após foi até hoje. 

(...)
O ministro Miguel Macedo foi acusado no processo Vistos Gold por ter enviado à Faasa, empresa investigada em Espanha por ligações ao “cartel do fogo”, o caderno de encargos do concurso de 2014 para operação e manutenção dos Kamov. A empresa não chegou a concorrer, mas segundo o Ministério Público teria sido mais tarde subcontratada pela Everjets, a empresa que ganhou esse concurso. Ricardo Dias, presidente do conselho de administração da Everjets, nega. Diz que a empresa nunca subcontratou a Faasa, não teve acesso ilícito ao caderno de encargos nem tem qualquer relação com o antigo ministro do Governo de Passos Coelho.

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