Bónus milionário para os partidos aprovado sem deixar
rasto
À porta
fechada, sem actas, ocultando que partidos fizeram cada proposta - sinalizadas
com as letras A, B e C. A lei que deu uma prenda de Natal aos partidos foi
aprovada em segredo. O destino dela está agora nas mãos de Marcelo.
Não há actas das reuniões. Não há registo da audição
ao presidente do Tribunal Constitucional. Não há um só papel guardado, muito
menos registado no site do Parlamento, com as propostas de redacção da lei ou
de que partidos vieram. Mais: o PÚBLICO descobriu um email trocado entre os
oito deputados que prepararam tudo, com um quadro comparativo das três
propostas de alteração, no qual em vez do nome do respectivo partido, se
organiza a tabela por A, B e C, “salientando a natureza reservada do documento”
- não fosse o diabo tecê-las e haver uma fuga de informação que permitisse
perceber a origem das propostas.
As alterações que o Parlamento aprovou no dia 21 de
Dezembro ao financiamento dos partidos — acabando com os limites para angariar fundos e
concedendo a si próprios a garantia de devolução total do IVA —
foram feitas sem deixar rasto. Foram nove meses de discussão na Assembleia, num
grupo de trabalho dito “informal” (mas que no site do Parlamento aparece como
formal) e que funcionou sempre à porta fechada, sem que os jornalistas pudessem
acompanhar as discussões.
José Silvano, o deputado do PSD que coordenou os
trabalhos, reconhece o método adoptado: “Se é um grupo informal, não há
propostas [oficiais]. Os partidos sugeriram essas propostas, mas não sei qual e
em que pontos”, disse ao PÚBLICO. E não há provas documentais do processo? “Não
existem actas, de documental só existe a lei que foi aprovada. No grupo de
trabalho não havia votação e as propostas eram apresentadas oralmente”,
confirma o deputado. E com a colaboração dos responsáveis financeiros dos
partidos, que foram envolvidos — o que Luís Patrão, do PS, reconhecia na
notícia do PÚBLICO que deu o caso ao conhecimento de todos.
A ideia era que tudo fosse como no jogo do “amigo
secreto” - todos davam as prendas, mas ninguém teria que saber de quem era.
Porque o objectivo era que, no final, houvesse unanimidade na votação das
alterações à lei. Só que o CDS estava contra. E bloqueou o processo que estava
a ser feito em contra-relógio logo em Julho, impedindo os restantes partidos de
aprovarem o bónus antes do Verão e a tempo das autárquicas.
O segundo acto, confirmou o PÚBLICO, foi decidido a
mais alto nível, nas lideranças parlamentares. Na conferência de líderes, o
presidente da Assembleia da República alertou que era preciso resolver o
problema detectado pelo Tribunal Constitucional (TC) com urgência, antes que os
partidos ficassem sem fiscalização. E, aproveitando o mote, com o CDS a manter
o “não” às duas propostas polémicas, os restantes decidiram avançar na última
votação antes do Natal, quase fazendo passar despercebida a alteração - porque
face à natureza secreta da discussão, ninguém sabia o que ia ser posto a
debate. Foi assim que, no dia 21, a lei foi aprovada de uma assentada na
generalidade, em especialidade e votação final global, apenas com votos contra
do CDS e do PAN.
Pelo meio, a proposta passou brevemente pela Comissão
de Direitos Constitucionais, da qual dependia o grupo de trabalho. Pedro
Bacelar Vasconcelos, que preside a essa comissão, lembra-se de a ter levado “à
discussão”, mas de ter sido apreciada “sem objecções”. Mas estranha que o
processo de discussão não tenha deixado rasto documental no grupo de trabalho.
“Se não há registo, surpreende-me”, assume o socialista. “E, se é assim, a
situação justifica que se reveja o estatuto e funcionamento dos grupos de
trabalho, para adaptar as regras à exigência de transparência que é dever do
Parlamento”, declara ao PÚBLICO.
Nove
meses discretos
Tudo começou em Abril, quando o presidente do
Tribunal Constitucional alertou os deputados para dois problemas relativos à
sua responsabilidade de fiscalizar os partidos. Primeiro, que o tribunal estava
a funcionar como instrutor e decisor ao mesmo tempo, o que levantava um
problema de inconstitucionalidade. Segundo, que não havia direito a recurso de
uma decisão. Acontece que, se este foi o mote inicial, o grupo de trabalho
acrescentou-lhe dois pontos: acabar o valor máximo para os fundos angariados
(uma reclamação do PCP para não ter mais problemas com a Festa do Avante!, mas
que o PSD aproveita no Chão da Lagoa) e deixar preto no branco que os partidos
passam a ter devolução do IVA de todas as suas despesas (ao contrário do que o
Fisco tem determinado em vários casos, o que já levou o PS a reclamar cinco
milhões em tribunal).
Ontem, o PÚBLICO tentou saber junto dos deputados
envolvidos na comissão quem tinha proposto o quê, ao longo destes meses. Mas os
quatro partidos que aprovaram a legislação não responderam.
O que há — e o PÚBLICO teve acesso a essa
documentação - é uma troca de emails do coordenador do grupo de trabalho com os
deputados. É aí que se percebe que a discussão só está presa às questões
levantadas pelo TC até Junho. É que, a 7 de Junho, há um email enviado pelo
coordenador, José Silvano, fazendo um ponto de situação das propostas entradas.
É onde aparece o quadro comparativo das propostas, organizado por partido A,
partido B e partido C. Sendo que é num outro email, enviado a 29 de Junho, que
já se percebe que o processo já está a gerar divisões entre os deputados: “Mais
se informa que, no referido texto, se assinalam a vermelho as
matérias/disposições em relação às quais foram manifestadas reservas”, lê-se no
documento, que leva em anexo a “proposta consensualizada”.
Agora, a lei está aprovada — e já chegou à Presidência da República, para promulgação. Marcelo pode pôr a sua assinatura
— ou vetar a lei e devolvê-la ao Parlamento.
A alteração à lei de financiamento dos partidos, que foi discretamente aprovada no Parlamento em plena época do Natal, tem motivado críticas generalizadas. A polémica ganhou eco nos espaços de opinião dos meios de comunicação e nas redes sociais, como agora tem sido prática corrente.
É
importante recordar que, seja para esta ou para outras leis, há mecanismos
próprios que os cidadãos podem e devem exercer para que a sua voz seja ouvida
para lá do Facebook e do Twitter. Aliás, a livre participação nos mecanismos da
sociedade democrática é um direito na república – e um dever de cidadania
activo. Por isso, vale a pena resumir algumas formas de participação social e
política disponíveis em Portugal.
A primeira
e mais óbvia forma de participação democrática é o voto. Votar
com regularidade nos diversos actos eleitorais garante a manutenção da
relevância do sistema político e assegura que a representatividade funciona.
Para exercer o direito de voto, convém estar informado, pelo que o consumo de
informação isenta e credível é essencial – e os meios de comunicação de
referência fazem parte do sistema democrático e o seu consumo regular faz parte
da capacitação cidadã. À partida, quanto mais bem informada estiver a sociedade,
melhores são as suas escolhas.
Uma segunda
forma de participação democrática tem a ver com o direito de reclamação.
Há vários actores do sistema político a quem é possível recorrer para proceder
a reclamações:
- a
página oficial da Presidência da República tem um formulário próprio para “escrever ao Presidente”, que é uma forma eficiente de
fazer sentir preocupações de cidadania ao mais alto titular da nação;
. da
mesma forma, pode também ser preenchido o formulário para entrar em contacto
com o gabinete do presidente da Assembleia da República, que é a
segunda figura do Estado;
. Na
página da Assembleia da República, está também disponível a lista de contactos dos grupos parlamentares, podendo
através destes entrar em contacto com os deputados;
. o
provedor de Justiça também permite efectuar uma queixa online (embora
no momento da publicação esta página não esteja disponível);
A terceira
forma de participação tem a ver com o envolvimento directo nas instituições
políticas.
Esta forma passa pela participação ou mesmo criação de uma petição à Assembleia da
República, que será discutida em plenário caso atinja as quatro mil
assinaturas – mesmo que atinja "apenas" mil, os seus peticionários
terão sempre de ser ouvidos. A outra forma de participação directa será o
envolvimento na vida dos partidos políticos o que, no limite, pode configurar a
criação de um movimento de cidadãos ou de um partido político.
A verdade
é que a reclamação nas redes sociais vale pouco ou nada em termos de cidadania.
A participação social, essa, é inestimável e tem mecanismos próprios para ser
efectiva. É usá-los.
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