quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Bónus milionário para os partidos aprovado sem deixar rasto na época natalícia

Bónus milionário para os partidos aprovado sem deixar rasto

À porta fechada, sem actas, ocultando que partidos fizeram cada proposta - sinalizadas com as letras A, B e C. A lei que deu uma prenda de Natal aos partidos foi aprovada em segredo. O destino dela está agora nas mãos de Marcelo. 
Não há actas das reuniões. Não há registo da audição ao presidente do Tribunal Constitucional. Não há um só papel guardado, muito menos registado no site do Parlamento, com as propostas de redacção da lei ou de que partidos vieram. Mais: o PÚBLICO descobriu um email trocado entre os oito deputados que prepararam tudo, com um quadro comparativo das três propostas de alteração, no qual em vez do nome do respectivo partido, se organiza a tabela por A, B e C, “salientando a natureza reservada do documento” - não fosse o diabo tecê-las e haver uma fuga de informação que permitisse perceber a origem das propostas.

As alterações que o Parlamento aprovou no dia 21 de Dezembro ao financiamento dos partidos — acabando com os limites para angariar fundos e concedendo a si próprios a garantia de devolução total do IVA — foram feitas sem deixar rasto. Foram nove meses de discussão na Assembleia, num grupo de trabalho dito “informal” (mas que no site do Parlamento aparece como formal) e que funcionou sempre à porta fechada, sem que os jornalistas pudessem acompanhar as discussões.  

José Silvano, o deputado do PSD que coordenou os trabalhos, reconhece o método adoptado: “Se é um grupo informal, não há propostas [oficiais]. Os partidos sugeriram essas propostas, mas não sei qual e em que pontos”, disse ao PÚBLICO. E não há provas documentais do processo? “Não existem actas, de documental só existe a lei que foi aprovada. No grupo de trabalho não havia votação e as propostas eram apresentadas oralmente”, confirma o deputado. E com a colaboração dos responsáveis financeiros dos partidos, que foram envolvidos — o que Luís Patrão, do PS, reconhecia na notícia do PÚBLICO que deu o caso ao conhecimento de todos.

A ideia era que tudo fosse como no jogo do “amigo secreto” - todos davam as prendas, mas ninguém teria que saber de quem era. Porque o objectivo era que, no final, houvesse unanimidade na votação das alterações à lei. Só que o CDS estava contra. E bloqueou o processo que estava a ser feito em contra-relógio logo em Julho, impedindo os restantes partidos de aprovarem o bónus antes do Verão e a tempo das autárquicas.  

O segundo acto, confirmou o PÚBLICO, foi decidido a mais alto nível, nas lideranças parlamentares. Na conferência de líderes, o presidente da Assembleia da República alertou que era preciso resolver o problema detectado pelo Tribunal Constitucional (TC) com urgência, antes que os partidos ficassem sem fiscalização. E, aproveitando o mote, com o CDS a manter o “não” às duas propostas polémicas, os restantes decidiram avançar na última votação antes do Natal, quase fazendo passar despercebida a alteração - porque face à natureza secreta da discussão, ninguém sabia o que ia ser posto a debate. Foi assim que, no dia 21, a lei foi aprovada de uma assentada na generalidade, em especialidade e votação final global, apenas com votos contra do CDS e do PAN.

Pelo meio, a proposta passou brevemente pela Comissão de Direitos Constitucionais, da qual dependia o grupo de trabalho. Pedro Bacelar Vasconcelos, que preside a essa comissão, lembra-se de a ter levado “à discussão”, mas de ter sido apreciada “sem objecções”. Mas estranha que o processo de discussão não tenha deixado rasto documental no grupo de trabalho. “Se não há registo, surpreende-me”, assume o socialista. “E, se é assim, a situação justifica que se reveja o estatuto e funcionamento dos grupos de trabalho, para adaptar as regras à exigência de transparência que é dever do Parlamento”, declara ao PÚBLICO.

Nove meses discretos

Tudo começou em Abril, quando o presidente do Tribunal Constitucional alertou os deputados para dois problemas relativos à sua responsabilidade de fiscalizar os partidos. Primeiro, que o tribunal estava a funcionar como instrutor e decisor ao mesmo tempo, o que levantava um problema de inconstitucionalidade. Segundo, que não havia direito a recurso de uma decisão. Acontece que, se este foi o mote inicial, o grupo de trabalho acrescentou-lhe dois pontos: acabar o valor máximo para os fundos angariados (uma reclamação do PCP para não ter mais problemas com a Festa do Avante!, mas que o PSD aproveita no Chão da Lagoa) e deixar preto no branco que os partidos passam a ter devolução do IVA de todas as suas despesas (ao contrário do que o Fisco tem determinado em vários casos, o que já levou o PS a reclamar cinco milhões em tribunal).

Ontem, o PÚBLICO tentou saber junto dos deputados envolvidos na comissão quem tinha proposto o quê, ao longo destes meses. Mas os quatro partidos que aprovaram a legislação não responderam.

O que há — e o PÚBLICO teve acesso a essa documentação - é uma troca de emails do coordenador do grupo de trabalho com os deputados. É aí que se percebe que a discussão só está presa às questões levantadas pelo TC até Junho. É que, a 7 de Junho, há um email enviado pelo coordenador, José Silvano, fazendo um ponto de situação das propostas entradas. É onde aparece o quadro comparativo das propostas, organizado por partido A, partido B e partido C. Sendo que é num outro email, enviado a 29 de Junho, que já se percebe que o processo já está a gerar divisões entre os deputados: “Mais se informa que, no referido texto, se assinalam a vermelho as matérias/disposições em relação às quais foram manifestadas reservas”, lê-se no documento, que leva em anexo a “proposta consensualizada”.

Agora, a lei está aprovada — e já chegou à Presidência da República, para promulgação. Marcelo pode pôr a sua assinatura — ou vetar a lei e devolvê-la ao Parlamento.

A alteração à lei de financiamento dos partidos, que foi discretamente aprovada no Parlamento em plena época do Natal, tem motivado críticas generalizadas. A polémica ganhou eco nos espaços de opinião dos meios de comunicação e nas redes sociais, como agora tem sido prática corrente.
É importante recordar que, seja para esta ou para outras leis, há mecanismos próprios que os cidadãos podem e devem exercer para que a sua voz seja ouvida para lá do Facebook e do Twitter. Aliás, a livre participação nos mecanismos da sociedade democrática é um direito na república – e um dever de cidadania activo. Por isso, vale a pena resumir algumas formas de participação social e política disponíveis em Portugal.

primeira e mais óbvia forma de participação democrática é o voto. Votar com regularidade nos diversos actos eleitorais garante a manutenção da relevância do sistema político e assegura que a representatividade funciona. Para exercer o direito de voto, convém estar informado, pelo que o consumo de informação isenta e credível é essencial – e os meios de comunicação de referência fazem parte do sistema democrático e o seu consumo regular faz parte da capacitação cidadã. À partida, quanto mais bem informada estiver a sociedade, melhores são as suas escolhas.

Uma segunda forma de participação democrática tem a ver com o direito de reclamação. Há vários actores do sistema político a quem é possível recorrer para proceder a reclamações:

- a página oficial da Presidência da República tem um formulário próprio para “escrever ao Presidente”, que é uma forma eficiente de fazer sentir preocupações de cidadania ao mais alto titular da nação;

. da mesma forma, pode também ser preenchido o formulário para entrar em contacto com o gabinete do presidente da Assembleia da República, que é a segunda figura do Estado;

. Na página da Assembleia da República, está também disponível a lista de contactos dos grupos parlamentares, podendo através destes entrar em contacto com os deputados;

. o provedor de Justiça também permite efectuar uma queixa online (embora no momento da publicação esta página não esteja disponível);

terceira forma de participação tem a ver com o envolvimento directo nas instituições políticas. Esta forma passa pela participação ou mesmo criação de uma petição à Assembleia da República, que será discutida em plenário caso atinja as quatro mil assinaturas – mesmo que atinja "apenas" mil, os seus peticionários terão sempre de ser ouvidos. A outra forma de participação directa será o envolvimento na vida dos partidos políticos o que, no limite, pode configurar a criação de um movimento de cidadãos ou de um partido político.

A verdade é que a reclamação nas redes sociais vale pouco ou nada em termos de cidadania. A participação social, essa, é inestimável e tem mecanismos próprios para ser efectiva. É usá-los.

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