O Ministério Público revelou todos os indícios de corrupção. Um cofre suíço
guardava documentos: primo do ex-líder do PS foi herdeiro de Santos Silva
Tarde de 13 de Março de 2017. Isolados do rebuliço
provocado pelos jornalistas à porta do edifício do Departamento Central de
investigação e Acção Penal (DCIAP), os três homens do Ministério Público (MP)
demoraram apenas 10 minutos a resumir numa das salas do DCIAP as 103 páginas
com os indícios de crimes alegadamente praticados por José Sócrates na Operação
Marquês. Depois, forneceram ao antigo primeiro-ministro uma cópia do longo
despacho judicial e deram-lhe tempo para analisar o documento com os três advogados
que o acompanhavam.
O interrogatório recomeçou 40 minutos depois, às
15h35. Como era previsível, Sócrates falou muito: esteve 5h30 a contrariar de
forma contundente, às vezes, num tom de voz alto e visivelmente agressivo, as
acusações dos procuradores Rosário Teixeira, Filipe Preces e Filipe Costa e do
inspector tributário Paulo Silva.
Este foi o terceiro interrogatório do
ex-governante na Operação Marquês e o primeiro em que os investigadores lhe
imputaram de forma clara até a responsabilidade da estratégia para esconder os
alegados pagamentos corruptos recebidos do Grupo Lena, de Vale do Lobo e do
Grupo Espírito Santo (GES). Na prática, a equipa de investigadores do DCIAP
assumiu que praticamente todos os indícios de corrupção e de dissimulação de
património foram planeados e executados sob ordens directas de Sócrates. Por
isso, o ex-líder do PS ficou indiciado de mais três crimes em relação ao
anterior interrogatório ocorrido em Maio de 2015. Agora, são seis os crimes de
que é suspeito:
RELACIONADO
– corrupção passiva para a prática de acto ou omissão
contrários aos deveres do cargo (intervenções ilegais em negócios do Grupo
Lena, Vale do Lobo e GES/PT);
– fraude fiscal qualificada (rendimentos ocultos
controlados por testas-de-ferro);
– branqueamento de capitais (ocultação e falsa
justificação de fundos através de terceiros);
– tráfico de influência (contactos estabelecidos com
diplomatas portugueses para negócios do Grupo Lena no estrangeiro);
– falsificação (contrato de arrendamento de um
apartamento em Paris e documentos de adesão ao regime extraordinário de
regularização fiscal de 2010);
– recebimento indevido de vantagem (pagamento de
despesas de lazer em 2011).
O extenso despacho de indiciação do Ministério Público
dá ainda a entender que Sócrates foi corrompido enquanto se verificaram os
casos Freeport (autorização e licenciamento de um outlet na zona de Alcochete,
distrito de Setúbal) e Face Oculta (concursos ganhos por um sucateiro de
Aveiro) e que foi devido ao impacto mediático destes processos que o político
encetou novas estratégias de dissimulação dos milhões da corrupção que acertou
com o empresário Joaquim Barroca, Armando Vara, Hélder Bataglia e o então
banqueiro Ricardo Salgado. Directamente ou através de dois testas-de-ferro que
lhe guardaram inicialmente na Suíça a fortuna suspeita, o primo José Paulo Pinto
de Sousa e o amigo Carlos Santos Silva. Problema: os investigadores judiciais
continuam a não dizer onde e quando é que exactamente é que isso sucedeu. Mas
insistem (porventura devido às datas dos negócios e aos fluxos financeiros
detectados de e para contas de offshores) que tudo se passou enquanto Sócrates
era primeiro-ministro, entre Março de 2005 e Junho de 2011.
Ricardo Salgado
Os 127 levantamentos em numerário
A nova indiciação e os crimes imputados a José
Sócrates, a que a SÁBADO acedeu juntamente com o resumo do interrogatório do
ex-governante (um total de 105 páginas, sendo 103 com os factos imputados),
contemplam 11 pontos que os investigadores provavelmente usarão para
fundamentar a acusação final da Operação Marquês, prevista para o próximo mês
de Junho. Por isso, muitos dos factos e indícios com que Sócrates foi
confrontado neste novo interrogatório já constaram de forma mais ou menos
completa em outra documentação do processo-crime aberto em 2013.
Por exemplo, a questão das entregas de numerário. Só
que, agora, o MP já não refere a existência de apenas 40 entregas em cash, mas "pelo menos, 127 levantamentos por caixa,
os quais perfazem o montante total de €993.220, todos eles ocorridos na
sequência de solicitação do arguido José Sócrates e/ou realizados no interesse
deste".
A equipa de investigadores do MP e da Autoridade
Tributária (AT) acredita que tem provas de que estes levantamentos em numerário
de Santos Silva começaram a 17 de Dezembro de 2010, logo após o início da
transferência de mais de 23 milhões de euros que o empresário tinha escondido
em contas na Suíça e que regularizou ainda nesse ano com base numa lei fiscal
extraordinária aprovada pelo governo liderado por José Sócrates. Dinheiro que,
no entender do MP, sempre foi quase todo de Sócrates.
Além destes valores, os investigadores garantem que
identificaram outros levantamentos de contas de terceiros realizados novamente
por Santos Silva e sempre destinados ao ex-político que também exerceu funções
de ministro do Ambiente entre Outubro de 1999 e Abril de 2002. Ainda segundo
estas contas, no total, o dinheiro vivo entregue a Sócrates atingiu os
€1.169.700. E neste montante não está incluído o valor dos três imóveis da mãe
de Sócrates que foram comprados por Santos Silva – mais cerca de 750 mil euros.
No primeiro e único interrogatório em que aceitou
prestar declarações, o empresário Santos Silva reconheceu ao MP e ao juiz de
instrução Carlos Alexandre – e depois também o fez na contestação das primeiras
medidas de coacção para o Tribunal da Relação de Lisboa – que tinha entregado a
José Sócrates, por via directa ou através de intermediários, apenas cerca de
"550 mil euros" em numerário. E que se tratara de empréstimos para o
ex -primeiro-ministro "honrar alguns compromissos que tinha" e para
lhe "permitir um nível de vida compatível com o seu estatuto social"
enquanto não recompusesse a vida profissional (Sócrates só terá pago até hoje
250 mil euros a Santos Silva).
"A circulação de tais fundos por diversas contas,
o seu levantamento e a posterior circulação em numerário, de maneira a não
haver rasto na transposição de tais fundos para a esfera de José Pinto de Sousa
[José Sócrates], a forma pela qual (…) se referem (…) utilizando palavras de
código, o tom da exigência com que tais solicitações são efectuadas [nos
telefonemas gravados no processo], denotam claramente o intuito da sua
ocultação e encobrimento, incompatível com a tese de estarmos, como os arguidos
querem fazer crer, perante meros empréstimos", contrapôs na altura o
procurador Rosário Teixeira, que insistiu neste argumento durante o último
interrogatório de Sócrates.
No entanto, segundo a nova documentação a que a SÁBADO
acedeu, os registos das entregas de dinheiro vivo a Sócrates foram descritos de
forma resumida, mas novamente com valores pouco exactos. Num dos casos, que
segundo o MP terá ocorrido a 29 de Outubro de 2013, Santos Silva teria dado a
Sócrates "entre €10.000 e €50.000". Dois dias depois, as autoridades
registaram outra alegada entrega, desta vez concretizada pela mulher do
empresário, Inês do Rosário, no apartamento de Lisboa de José Sócrates. Na
indiciação, surge referido um valor aberto: "entre €5.000 e €10.000".
Nestes registos os investigadores anotaram outras
transacções com intervalos relevantes de valores. Uma ocorreu a 11 de Novembro,
quando Santos Silva e Sócrates terão voltado a encontrar-se e o empresário
ter-lhe-á entregado "entre 10 mil e 100 mil euros" em dinheiro vivo.
O hiato de valores terá sido ditado pelas dificuldades óbvias da investigação
em saber exactamente o que constava no interior dos envelopes transportados
por Santos Silva e deixados no recato da casa de Sócrates. Mais do que
chegar a entregas de montantes exactos, os investigadores apostam nas datas dos
levantamentos que Santos Silva fez em diversos bancos (e na relativa
coincidência temporal das entregas subsequentes a Sócrates) para fundamentar a
prova (indirecta) da passagem do dinheiro. Mesmo quando estão em causa valores
bastante díspares, como aconteceu a 10 de Dezembro de 2013, quando se verificou
uma nova passagem de dinheiro que pode ter variado entre "5 mil e 50 mil
euros".
Sócrates em frente ao
Estabelecimento Prisional de Évora
O cofre secreto encontrado na Suíça
A tese final do Ministério Público estará já
delimitada e aponta para o facto de Sócrates ter sido corrompido com a ajuda de
dois testas-de-ferro, o primo José Paulo e o amigo Santos Silva, que abriram
contas bancárias na Suíça e usaram durante anos diversas entidades offshore para dissimular o dinheiro da corrupção. Aliás,
segundo consta no relato da nova indiciação de Sócrates, foi o antigo político
que até apresentou Santos Silva ao tio, António Pinto de Sousa (já falecido), o
pai de José Paulo.
Depois vieram os negócios suspeitos conjuntos,
iniciados com uma espécie de teste (uma tentativa frustrada de sociedade com
uma empresa do grupo do construtor civil José Guilherme) e, finalmente, a
aproximação definitiva ao Grupo Lena. "Entre 2005 e 2006, os arguidos
Carlos Santos Silva e José Sócrates mantiveram contactos no sentido de o
primeiro vir a assumir o papel de intermediário entre os grupos empresariais
portugueses, em particular ligados ao sector das obras públicas, e o poder
político, na pessoa do arguido José Sócrates", lê-se no auto de
interrogatório de 13 de Março de 2017.
Mais adiante, o documento judicial concretiza melhor
esta ideia dos investigadores do DCIAP: "A estratégia então acordada entre
os arguidos passava pela utilização de uma sociedade do sector de obras
públicas que se posicionaria no mercado de forma a participar, ainda que com
posição minoritária, em consórcios que iriam concorrer a grandes empreitadas de
obras públicas, em Portugal e no estrangeiro, com o apoio do Governo português,
de forma a aproveitar os ganhos que viessem a ser gerados, oferecendo essa
sociedade a vantagem, por via do acesso à informação e facilitação e angariação
de negócios, da proximidade ao poder político, através da pessoa do arguido
José Sócrates."
Segundo esta versão, que Sócrates desmentiu
novamente com veemência no último interrogatório, o político teria acordado com
Santos Silva a abertura de contas no estrangeiro, sobretudo no banco UBS, na
Suíça. E precisamente uma dessas contas ficou registada em nome do offshore Belino
Foundation, com o MP a garantir que a maior parte dos fundos ali depositados
foram sempre de José Sócrates, apesar de o antigo primeiro -ministro nunca ter
figurado oficialmente como titular quer do offshore quer das referidas contas bancárias. Mais: caso
Santos Silva morresse, o herdeiro de 80% do saldo da Belino Foundation seria
entregue a José Paulo, "actuando este na qualidade de fiduciário do
arguido José Sócrates", conforme garantiram os investigadores.
Uma parte das provas deste episódio foram encontradas
num discreto cofre na Suíça alugado para guardar a documentação que prova que
José Paulo chegou a ser o herdeiro deste património acumulado por Santos Silva.
O mesmo José Paulo que os investigadores da Operação Marquês garantem que, numa
das estadias de Sócrates e de vários familiares no hotel de luxo Sheraton Pine
Cliffs, no Algarve, pagou em notas a conta de €21.478,32.
"A partir de Julho de 2007, os arguidos Carlos
Santos Silva, José Sócrates e José Paulo Pinto de Sousa acordaram que seriam concentradas
nas contas abertas pelo Carlos Santos Silva, em nome da Giffard e da Belino
[dois offshores], outros fundos que viessem a ser recebidos como contrapartida
por actos do arguido José Sócrates, incluindo os que já se encontravam na
esfera de José Paulo Pinto de Sousa", salientou a indiciação, alertando
que o primo de Sócrates transferiu logo nesse mês dois milhões de euros para os
offshores de Santos Silva.
No início do ano seguinte, em 2008, seguiram-se outras
transferências de dinheiro e aplicações financeiras avaliadas em quase 4,5
milhões de euros, "em face de referências públicas ao José Paulo no âmbito
de investigações em curso em Portugal, relativas ao caso Freeport" (um
processo que acabou sem condenados em 2012 e que visou o alegado pagamento de
subornos a políticos portugueses, tendo sido associado a Sócrates). Contas
feitas, o MP diz que até à data do encerramento, em meados de Abril de 2008, a
conta da Belino recebeu cerca de 9,8 milhões de euros.
Para José Sócrates, esta versão dos factos é
simplesmente disparatada. No mês passado, à entrada no Departamento Central de
Investigação e Acção Penal, Sócrates disse aos jornalistas que iria responder a
todas as questões que lhe fossem colocadas, mas que deveria ser o MP a dar
explicações por aquilo que o ex-primeiro-ministro classificou como uma
"campanha maldosa e difamatória" contra ele. E acrescentou que estava
ali para se defender de "insinuações delirantes, absurdas, falsas,
injustas e mentirosas".
E fê-lo durante o interrogatório, pois reafirmou que
nunca teve intervenção em qualquer concurso – como no caso das obras referentes
ao projecto do comboio de alta velocidade ou nas intervenções da Parque Escolar
– e na abertura de portas ao Grupo Lena para entrar na Venezuela. A resposta de
Sócrates incidiu na seguinte imputação do MP: "Tais favores acabaram aliás
por se traduzir, em particular, no apoio à contratação de empresas do Grupo
Lena no âmbito do projecto Parque Escolar, na concessão a um consórcio
integrado pela Lena, designado Elos, do troço Poceirão-Caia no âmbito da Rave
[a fixação de uma indemnização caso não avançasse a obra] e nos negócios
celebrados na Venezuela para a construção de casas pré-fabricadas."
Na indiciação, os investigadores do MP e da Autoridade
Tributária concluíram que houve corrupção nestes negócios, mas só avançaram com
os valores de adjudicações ao Lena pela sociedade Parque Escolar, ou seja, um
conjunto de obras avaliadas em cerca de "90 milhões de euros" que
representarão "10,6% das adjudicações totais, numa dimensão superior à
quota de mercado do mesmo grupo".
Carlos Santos Silva e
Sócrates
Os pagamentos e a corrupção com oxigénio
Quanto aos pagamentos corruptos, o MP diz que a forma
encontrada foi o contrato de prestação de serviços (os investigadores
consideram-no fictício) que o Grupo Lena fez com uma empresa de Carlos Santos
Silva, a XLM, que previa o pagamento de 250 mil euros por trimestre entre 1 de
Agosto de 2009 e 31 de Julho de 2012. O pagamento total terá atingido os 3
milhões de euros (sem IVA).
O MP acha que isto fazia também parte do esquema de
dissimulação do circuito do dinheiro para fazer chegar dinheiro a Sócrates,
directamente ou através de outras pessoas como um dos sócios de Santos Silva,
Rui Mão de Ferro. E também para pagar ao blogger que defendia Sócrates na
Internet, António Peixoto, ou remunerar a ex-mulher do político, Sofia Fava
(recebeu cerca de 333 mil euros que só declarou às Finanças após a detenção de
Sócrates), Domingos Farinho (o professor universitário que ajudou ou escreveu o
livro de Sócrates, A Confiança no Mundo) e até o aluguer de longa duração de
carros utilizados, por exemplo, por Sofia Fava, pela cunhada de José Paulo,
pela mãe e pelo irmão de Sócrates.
O antigo governante defendeu-se de tudo isto, mas
pediu para abrir o interrogatório do mês passado com um "protesto"
sobre a questão da competência do DCIAP e do Tribunal Central de Instrução
Criminal para apreciar os factos da Operação Marquês, uma vez que estão em
causa actos praticados no exercício do cargo de primeiro-ministro. Depois,
criticou o que considerou ser a violação dos prazos do inquérito (dias depois
deste interrogatório, a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal,
deu mais tempo aos investigadores para concluírem o processo até Junho, tendo o
trabalho de ser avaliado ainda este mês) e insistiu no facto de "não lhe
serem apresentadas quaisquer provas ou elementos do processo" de onde
resultassem "as imputações que lhe são feitas".
Sobre a questão das obras públicas em que há suspeitas
de ter sido corrompido, Sócrates reafirmou que nunca teve intervenção em
qualquer concurso público ou sequer na abertura de portas ao Grupo Lena para
entrar na Venezuela. Em anteriores documentos judiciais, já o MP tinha deixado
escrito que as suspeitas de corrupção do processo residiam genericamente no
facto de o Grupo Lena ter ganho em Portugal "mais de 200 milhões de
euros" em obras públicas entre 2007/10.
Esta é há muito a tese do MP sobre parte dos crimes de
corrupção que as defesas do empresário Santos Silva e do ex-primeiro-ministro
rejeitam desde sempre de forma peremptória. Logo após os interrogatórios a
seguir às detenções de Novembro de 2014, que decretaram a prisão preventiva de
Sócrates e de Santos Silva, o advogado João Araújo, que defende ainda hoje o
ex-primeiro-ministro, deixou expresso na acta judicial que o crime de corrupção
tinha sido "alimentado a oxigénio" pela investigação para não
provocar a derrocada do processo. E ainda especificou que o cliente não tinha
sido "confrontado com qualquer facto que pudesse indiciar com
razoabilidade mínima a prática de um crime de corrupção (activa?; passiva?;
outra coisa qualquer?; quando?; para quê?; com que vantagem?)". De
seguida, concluiu: "Ora, este crime de corrupção é absolutamente
indispensável à história em que assenta esta imputação porque sem a corrupção
(...) inexiste a origem ilícita dos fundos, não há branqueamento [de
capitais]."
Vale do Lobo
Os negócios da PT e de Vale do Lobo
No recurso subsequente da prisão preventiva para a
Relação de Lisboa (Sócrates foi depois mantido em prisão preventiva pela
Relação de Lisboa), o advogado reiterou o que já tinha dito ao juiz Carlos
Alexandre, vincando que a suspeita de corrupção resultava de um "acervo de
indefinições, generalidades meramente conclusivas, intoleráveis em processo
penal". Também no recurso de Paula Lourenço, que defende Santos Silva, a
questão da corrupção foi arrumada em meia dúzia de linhas: "E é o facto de
a Lena ter sido beneficiada de contratos por parte do Estado no processo que
constitui o indício de corrupção? Não foram muitas as empresas portuguesas a
beneficiar de contractos com o Estado no tempo em que o Engº José Sócrates foi primeiro-ministro?
Só por isso há fundamento para a suspeita?"
Mas com o tempo, as suspeitas de corrupção tornaram-se
maiores na Operação Marquês. E sempre com Sócrates como o alvo principal. No
recente interrogatório, o antigo político foi confrontado com as provas sobre
os negócios da Portugal Telecom (PT) e o milionário financiamento público da
Caixa Geral de Depósitos (CGD) ao empreendimento de Vale de Lobo. "O
arguido Armando Vara [administrador da CGD nomeado pelo Governo de Sócrates]
transmitiu ao arguido José Sócrates que, uma vez ultimados os financiamentos a
conceder pela CGD, os referidos investidores particulares, através dos
executivos e líderes do projecto, os arguidos Diogo Ferreira e Rui Horta e
Costa, estariam dispostos a realizar o pagamento de uma contrapartida
financeira que poderia ser repartida entre os dois", lê-se na indiciação,
que ainda especifica que Sócrates informou Vara que aceitava "apoiar
politicamente o investimento, se necessário junto da restante administração da
CGD (…), mas agindo em função da perspectiva de poder beneficiar de
contrapartida por esse seu apoio". No total, a CGD financiou Vale de Lobo
com cerca de 284 milhões de euros e os sócios do empreendimento entraram com
"entre 5 a 6 milhões de euros".
O MP diz ainda que os pagamentos corruptos,
subsequentes à concessão dos empréstimos a Vale do Lobo, passaram também por um
circuito de dissimulação de offshores e contas internacionais. "Assim, a
pedido de José Sócrates, o arguido Carlos Santos Silva veio a transmitir ao
arguido Armando Vara, de quem era amigo, a identificação da conta suíça aberta
em nome de Joaquim Barroca [um dos donos do Grupo Lena]", vincou o
despacho de indiciação de Sócrates, para depois concluir de forma peremptória:
"Por sua vez, o arguido Armando Vara fez chegar ao arguido Diogo
Ferreira, administrador do grupo Vale do Lobo, a identificação da referida
conta, a fim de que pudesse dar início aos pagamentos da contrapartida então já
acordada, no montante de 2 milhões de euros." Segundo a tese do MP, o
dinheiro foi dividido em partes iguais por Vara e Sócrates.
Armando Vara
Mas a maior fatia de alegados pagamentos a José
Sócrates teve origem nos negócios da PT e terão sido acordados logo durante a
Oferta Pública de Aquisição pelo grupo Sonae do capital da empresa, em 2006. Os
pagamentos ascenderam a 6 milhões de euros, tendo transitado de um alegado
financiamento à Escom (uma empresa do BES liderada por Hélder Bataglia), feito
através do BES Angola e do BES. Segundo o MP, o dinheiro passou por contas de
offshores de Bataglia, com uma parte a ser encaminhada para o offshore Gunter,
com conta na Suíça e detido por José Paulo, "que havia aceite guardar os
fundos por conta do arguido José Sócrates".
Os
milhões seguiram depois para as contas de Santos Silva. Meses depois, a
administração da PT iniciou um processo de restruturação da empresa, com a
separação da PT Multimédia e a perspectiva de novos investimentos no Brasil.
"Assim, em meados do ano 2007, o arguido Ricardo Salgado acordou com o
arguido José Sócrates a realização de pagamentos a favor do mesmo, até um
montante que poderia atingir os 15 milhões de euros, no sentido de garantir o
apoio do mesmo, enquanto primeiro-ministro, à estratégia definida para a
PT", concluiu a indiciação de Sócrates, especificando que Salgado recorreu
a Bataglia para o ajudar a transferir os milhões, através de uma "aparente
relação contratual" entre a Pinsong International, uma entidade controlada
pela ES Enterprises, e o offshore Markwell, de Bataglia.
Para
o MP, através deste circuito, foram primeiro transferidos 3 milhões para as
contas controladas por José Paulo na Suíça. "Na sequência do acordado
entre os arguidos Ricardo Salgado e José Sócrates, os pagamentos prometidos ao
segundo continuaram a ser realizados em 2008 e 2009 até atingir o montante de
15 milhões de euros que haviam sido prometidos", frisou o documento
judicial. Ou seja, depois do pagamento inicial de 3 milhões de euros ao primo
de Sócrates, seguiram outros 12 milhões para as contas na Suíça controladas por
Santos Silva/Joaquim Barroca.
Em
2010, com a venda da participação na operadora Vivo e a entrada da PT na nova
operadora Oi, Ricardo Salgado precisou de uma nova ajuda do primeiro-ministro
José Sócrates, que detinha o poder de bloqueio permitido pela golden share do
Estado português. E para pagar esse apoio foi usado um esquema alegadamente
montado por Bataglia, Santos Silva e Joaquim Barroca. Tratou-se de um negócio
imobiliário angolano feito através de um contrato de promessa de compra e venda
de um imóvel, que não chegaria ao fim e que levaria à perda do pagamento
inicial feito a título de sinal. "Em execução do acordado, o arguido
Hélder Bataglia concertou-se com Carlos Santos Silva no sentido de montar um
pretenso negócio que permitisse justificar o recebimento pelo Grupo Lena de uma
quantia de €8.000.000 destinada a depois ser utilizada em pagamentos de
pretensos serviços a contratualizar com a sociedade XLM [Santos Silva], sendo
depois, a partir desta última, distribuídos no interesse do arguido José
Sócrates."
O
problema é que Hélder Bataglia e Joaquim Barroca, dois dos delatores do MP,
desmentem que este negócio abortado fosse um esquema para transferir dinheiro
para José Sócrates. Ricardo Salgado também negou que as transferências de 15
milhões de euros identificadas pelos investigadores, e com origem na ES
Enterprises e destinadas às contas de Bataglia, tenham servido para pagar luvas
a José Sócrates. No recente interrogatório, Sócrates acusou igualmente o MP de
ser selectivo nas investigações de factos para o culpar de crimes e de fechar
os olhos a outros dados que o poderiam inocentar. E afirmou que se limitou a
ter um relacionamento "meramente institucional" com Ricardo Salgado.
Só falta explicar porque é que entraram todos aqueles milhões nas contas de
Santos Silva na Suíça.
Artigo originalmente publicado na edição n.º 675 da SÁBADO, de 6 de Abril
de 2017